Angela Leite - 0

A baleia Rajac

Resenha do livro de Stanley Spain: Rajac, a estória de uma baleia


Se as baleias tivessem mãos e pudessem com elas criar obras como os homens, chegariam, talvez, ao mesmo resultado que Stanley Spain chegou ao redigir a estória de Rajac – o heróico rorqual fin* – que abandona casa, família e ambiente conhecido, em busca da sabedoria, que salvará sua espécie da destruição. Se as baleias tivessem deuses, encontrariam em Yatroo – o solitário sábio – um digno depositário de seus mistérios, transmitidos ao jovem e destemido Rajac. Cumpridas todas as etapas clássicas de uma iniciação, como a passagem do mundo familiar para o mundo selvagem – porque desconhecido – ele obtém a maturidade, com o desvelamento da enigmática trama que será a chave da salvação dos cetáceos. Se, atualmente, os homens tivessem deuses, respeitariam heróis como Rajac, sacerdotes como Yatroo e as plácidas e brincalhonas baleias, cuja exemplar amabilidade é um traço marcante dos deuses que lamentamos hoje não criar para os homens.

Se as baleias tivessem dentes – diz uma canção popular da Indonésia – seu destino seria outro que não o que o arpão sempre lhe trouxe. Mas cabe a nós, tristes representantes da depredadora espécie humana, no século XX, o doloroso dever de responder à sátira de Xenófanes de Colofão e à sabedoria popular indonésia. Como as baleias não têm mãos para moldar seus deuses e heróis à sua semelhança, estão fadadas ao sangrento destino que uma raça de anti-heróis para os quais “sobram dentes” para elas assinalou.

É esta a única conclusão que nos resta ao saber que 2,5 milhões de baleias, dentre as dez espécies maiores, foram mortas entre 1900 e 1970, precisando, para tanto, que se abatessem 40 mil indivíduos, em uma única temporada, na Antártida, para perfazer uma soma tão assombrosa. Cientes dessas cifras, torna-se verossímil para nós o lamento de Varda, a baleia fin do Sul, de que são tantas as baleias mortas nos campos de krill, nas temporadas de caça, que as sobreviventes são obrigadas a consumir, junto com o plâncton, o sangue de suas irmãs.

Aos que se irritam com o caráter antropomorfizante da lenda criada pela autora, voltamos ao argumento de Xenófanes de que os egípcios só podem criar deuses de nariz chato como eles. É sempre preferível sonhar com as baleias enquanto elas existem, do que depois que elas virarem lendas de fato.

*baleia de barbatana da espécie fin, também conhecida como rorqual comum.