Angela Leite - 1995

Lobo de estimação

Lobo de estimação


Noite fechada no mais puro breu. Como verdadeiras tochas, quatro pontos indistintos rompem a escuridão.O fiel guarda-costas das crianças estaca, farejando o perigo. Rosna ameaçador, denunciando a tocaia. Tomados de pavor irmãos disparam nas brenhas até a aldeia próxima que lhes é familiar.

Soltando seu derradeiro urro, o destemido cão se lança como um bólido sobre aqueles olhos flamejantes... Quando o dia clareou, os camponeses encontraram, atrás de uma densa moita, os corpos destroçados dos lobos e do guardião".

 Ainda não sabia ler quando me choquei com estes pares de olhos faiscantes numa revista de variedades na casa dos meus avós.O fim do domingo encalorado de Copacabana envolvia os adultos em arrastadas conversas. Depois de conferir com eles, exaustivamente, repetidas vezes, os detalhes da crônica portuguesa, por meses a fio andei com o folhetim embaixo do braço. E com os lobos tão perto, tão dentro de mim, que procurava seus olhos cintilantes em todas as espécies de escuridão. E sempre os encontrava: embaixo da cama, na curva da escada, na quina do muro, atrás da porta do meu próprio quarto, quando acordava no meio do noite...

Hoje, tantas noites depois, quarenta anos passados, defendo os frágeis lobos remanescentes e seu direito de brilhar nas parcas florestas de fato que lhes poupamos. Plauto, há quase vinte e três séculos, já nos adverte que "para o homem o lobo é o homem, não o lobo", pista que pressenti naquele remoto verão, onde indícios inumeráveis vieram se depositar. Com o mesmo susto de então, ainda pulo da cama - estarrecida - de manhã, ao mais inodoro vestígio lupino, ao uivo mais longínquo, à pegada de mais leve impressão. Não fiquei mais pobre de medos.

Conservo um temor reverencial a florestas emaranhadas tais como estas que marcam o Brasil. Acerco-me delas, cautelosamente, no rasto de uma vida singular que lhes pertence e que transfiro - pelo a pelo - para um papel a meu alcance. Gosto que me enrosco de imaginar que esta intrincada mata tropical simboliza o inconsciente, fonte de tantos percursos desconhecidos.

Faço muita cerimônia com o mar enfurecido que anuncia as tempestades e volto humilde para a areia, reconhecendo o poder divino - como uma criatura primitiva - pelo fragor dos raios e o estrondo das ondas que vão devorando a praia.

Toda ressaca me bambeia as pernas. E já não me espanto se um comedido cientista arrisca que as baleias se divertem com o mar encapelado. E enquanto houver alguém que me conte como uma maciça senhora de 100 toneladas, daquelas francas-do-sul, debocha de ondas de 10 andares... faço questão de viver!

É preciso lembrar que nem tudo que vem do fundo merece livre curso.Nem sempre amar é liberar... Uma súbita mesquinharia sombreia, deslealmente, este fluxo de água doce que banha a relação com a minha irmã. - Quem turvou nossa visão? Um frio e áspero metal recobre este ombro querido que se amoldava, com prazer, à mais terna pressão de minha cabeça. - É armadura de uma mágoa insuspeitada?


O que dizer dos que fazem turismo em seu próprio interior? Só penetram mata adentro no papel de caçador; no mar se vestem de pirata e se limitam a pilhar. Suas maltratadas feras ganham o mundo ao primeiro soluço. Espécies, as mais diversas, são embaladas na mesma farsa, seguindo o roteiro do vilão. Para representar o lobo-mau não se exige ficha policial. Basta o fortuito esbarrão num homem mal-cuidado que a elas atribua seu desamor... e todos os tipos de presa cabem numa mesma boca.

Um prodigioso impulso - que Plínio, o velho, já no início de nossa era e os banhistas desta temporada testemunham em Caraguatatuba - move uma única espécie de golfinho a se aproximar espontaneamente da humana. Além do "tursiops truncatus", nenhum outro bicho se arrisca a tanto. E eles vêm ora a trabalho ora a recreio. Nosso "flíper" visi tante é recebido com excessos e todos se permitem passar-lhe a mão. Caldos, sufocamentos, água rasa para mais uma foto. Passeios de golfinho, um pouco de luta, uma pelada mais forçada... E o jocoso cetáceo reage à selvagem acolhida com seus recursos naturais.

Antigas espécies cartilaginosas, que se mantém inalteradas e eficientes por milhões de anos custam a entender que o mar não está para peixe. Invadem áreas consideradas de lazer, a cada dia mais espaçosas. Seu ambiente é transtornado por inéditas mudanças de clima e suas presas escasseiam possivelmente por sobrepesca. São caçadas como tubarões assassinos.

Um grupo sobrevivente de ariranhas consegue, pela primeira vez, reproduzir-se em cativeiro. Zelosas das crias do ano anterior e dos flertes atuais, reagem com mordidas e não com uma queixa-crime, à invasão de seu poço mal cercado por um garoto levado e um corajoso sargento. Sofrem uma sobrecaça na década subseqüente como punição por sua ferocidade. Em 15 visitas que lhes fiz no zôo paulista, para desenhá-las, não ouvi uma voz discordante do público.

O que fazer da ordem que herdamos de Drummond – "amar a nossa falta mesma de amor"? Entendendo talvez onde nos faltou amor. E, no vazio que ficou, tecer uma trama para que este tão próximo não padeça do mesmo mal.

E quanto a você que me lê... Não mate de fome o seu próprio lobo-mau.