Autobiografia
Nasci em pleno verão, numa cidade de muito sol. E cedo aprendi que a natureza é uma festa. Do Rio de Janeiro da época me lembro das ressacas na praia do Leblon e de uma matinha em plena Copacabana, perto do colégio de freiras, onde estudava. Na primeira acompanhava meu sorridente avô do Norte que levantava pesos no posto de salva-vidas, para espanto de todos e me chamava de “coração”, logo de manhãzinha. Ia para a matinha com o avô carioca, a bordo de um Gordini que ele apelidava de “sinhá”. Sentávamos embaixo das árvores e depois de escutarmos as vozes da floresta, ficávamos a imaginar que bichos ainda havia por lá… Ratazanas, gambás, corujas, algum esquilo, borboletas raras, beija-flores desconhecidos. Machado de Assis – a grande paixão deste professor – se encarregava de repovoar o bestiário original do Rio antigo. Uma dorzinha nostálgica nos deixava soturnos e queixosos. E eu crescia convencida de que perdera o Paraíso, pois na chácara de Mata-cavalos – onde não morava – não podia me embrenhar pelos matos vizinhos e esquecer a civilização. Mas pude me embrenhar pelo escritório deste avô Ary, forrado de enciclopédias, Darwin, Buffon e os clássicos gregos, onde aos poucos fui inventariando coleções de vidas que já não existiam mais. Fui longe na empresa e me especializei em dinossauros, desenhando mapas de sua distribuição, a época em que surgiram e aquela em que desapareceram. Ficava apaixonada pelo mistério que os varreu do planeta e confesso que até hoje não me convenci com nenhuma explicação, o que equivale a dizer que continuo apaixonada pelos gigantes. Tinha clara preferência pela vida dos bichos e aos quatro anos declarava minha frustração por não ter nascido cavalo.
Minha avó paraibana não perdia um banho de chuva, tocava modinhas tristes no bandolim e contava histórias terríveis de Lampião. Minha avó carioca me dava muito colo e desfiava sedas, bandós, leques e coches dos bailes onde valsara no início do século.O devaneio coloria o passado como um mundo muito melhor.
Sonhando tantas saudades enveredei pela filosofia e me extasiava com os seus primórdios, quando os pré-socráticos tinham uma explicação para tudo, um princípio para tudo, uma poesia que mencionava o imponderável sem combatê-lo, respeitando o que não cabe ao homem decifrar. Aprendi que as “coisas belas são difíceis” e a gostar das “coisas que são”.
Fiz, então, das saudades militância e me tornei, no dizer da amiga que me ensina grego, a “dona das causas perdidas”.
Se, nas gravuras da Grécia arcaica procuro resgatar uma sabedoria perdida na lufa-lufa de hoje, nas gravuras de bichos brasileiros, seleciono os maiores candidatos à extinção, numa tentativa de deter o tempo e reverter sua condenação. É um trabalho que me dá imenso prazer, pois, enquanto o executo cuidadosamente, a partir de leituras e observações, sinto-me de uma imbatível persuasão. Se isto corresponde aos fatos, não cabe a mim responder mas a quem observa o resultado final.
Angela Leite – 1985
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.