Cala, amendoeira, mais uma vez
Num bairro esquecido da cidade, onde crescem – dia após dia – edifícios pouco charmosos para uma classe supostamente ascendente, crescem, também, na mesma escala desordenada, ou usuais desconfortos de um urbanismo malsão. Trombadas, enchentes, blackouts; tiros, medos, assaltos; buracos e multas a cada esquina ao longo de um rush quase contínuo num pot pourri de incontáveis confusões.
Seguindo a feiúra vigente, fachadas são refeitas com alumínio, acrílico e o pior dos ray-bans, deixando um saldo de entulho em caçambas que alugam as ruas estritas e se aliam às construções para engrossar a atmosfera empoeirada.
Alheias ao cenário desnaturado, um grupo de árvores extravagantes – plantadas outrora por morador de outra fé – cresceu viçoso em uma esquina recuada, tecendo um túnel que se veste de cores diversas na seqüência das estações.
Quaresmeiras do quintal tocam a copa de colegas da calçada. Um ipê floresce com luxo, por pouco tempo, manchando de amarelo um fundo de muitos verdes. A sibipiruna, amputada de um dos braços, apóia-se na aroeira que só cresceu onde fazia falta, preenchendo-lhe a privação.
Destacada deste coro frondoso, a mais bem modelada das amendoeiras encosta nas paredes recuadas que a margeiam. A expectativa é grande! “– Neste ano, poderei talvez tocá-la do atelier e a vizinha Cristina de seu escritório…” Inúmeros brotos incham nos galhos desfolhados prometendo um chapéu de praia que se adianta à primavera, em tons de pêra madura, bem ao gosto da pintura flamenga.
Mas, no bairro esquecido, a patrulha do mal estar fica alerta para punir os dissidentes. Terceirizada pela Eletropaulo, uma milícia de marreteiros flagra a renovação em marcha e contra-ataca ceifando o túnel, os brotos em botão, a primavera prometida. Sobre a calçada, jogam os despojos do inimigo natural, sufocando duas árvores jovens que se aliaram às adultas para compor um sombreiro mais acolhedor (para as aves bem-vindas, os insetos benfazejos e os homens de outras vontades).
Há 20 dias os destroços se decompõem, acrescidos dos lixos que os passantes lhe conferem, em nome da harmonia que professam: “– Ao lixo o que é do lixo!”.
Quanto à Eletropaulo, suponho que julguem justo que da vida – tornada entulho por ela – cuide o morador, se é que isso não lhe apraz.
Nós aqui, da feíssima Superquadra Morumbi, contávamos – mais do que sempre – com a rebeldia festiva do verde para comungar da nossa crença da vida enquanto renovação.
Angela Leite – 2000
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.