Confissões de uma ecologista
Se eu pudesse caminhar para trás, palmilhando no contra-curso as raízes que me plantaram neste resgate de animais ameaçados, resgataria sombras de mim mesma que me marcaram como uma pessoa saudosa. Como alguém que se rebela contra o enterro de “idos” e “acontecidos” felizes.
Como alguém cujo olho deve o brilho a um brilho já vivido.
Um percurso tão longo para mim se mostraria acanhado e diminuto se eu quisesse atapetá-lo com todas as peles de animais abatidos para enfeite desde que eu me entendo por gente. Quantos sucumbem enquanto redijo um artigo para jorna1, pesquiso sua forma ou sua conduta, trabalho seu corpo na madeira de lei, exibo o produto final para as pessoas que passam, que passam e são tão poucas que ficam. Que ficam para refletir a partir de uma imagem estratificada, de um gesto flagrado, um instantâneo curtido do bicho o que cada um leva em si desta espécie. E a adesão se dá por solidariedade interpessoal. Em seguida vem o gosto saboroso em rezar a máxima do Guimarães: “Amar os bichos é um aprendizado de humanidade”.
Se a cada retrato bem sucedido correspondesse o resgate de um único indivíduo poderia considerar meu esforço recompensado. Mas que posso saber com certeza de moluscos e víboras camuflados e entranhados em “illo tempore” no âmago de outros percursos pessoais? Costumo ter o pavor de nunca ter salvo uma barbatana de baleia.
Paro para pesar se não há uma overdose de ignorância nisso. Ou de prepotência, ou de vaidade em negativo. Afinal quem pode enumerar os bichos escondidos na selva de cada um ou na selva tropical – perdidos na noite, no silêncio ou no esquecimento? Quem dá conta dos ausentes?
Toda pesquisa (para trás) padece de uma paixão pelo que já não existe. Uma fantasia se libera para disfarçar o morto. Para ludibriar o chumbo das coisas findas. Para criar a ilusão tão humana, tão cativante de que tudo que foi muito amado permanece vivo dentro de cada um.
Levo a vantagem hoje de só retratar espécies ameaçadas. Sorvi meu encanto pelos dinossauros desaparecidos na minha adolescência. Agora preciso da esperança de que ao menos um casal sobreviva para eu partir em sua procura. Um casal único justifica uma campanha. Já é protesto suficiente. O dodô que eu pintei aos quinze anos, para o avô que me ensinava esses caminhos, marcou esta passagem do desgosto pelo que findou para o gosto pelo que periga findar. É uma opção pelos vivos e um brinde aos presentes. Se a natureza é uma festa por que não multiplicar
os convivas?
Angela Leite – 1986
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.