Crônica dos 50
Naquele tempo – remoto para muitos e tão fresco para mim – as intrigas palacianas eram encenadas no Catete, os dragões da independência ovacionados pelas crianças tanto quanto papai-noel que descia de helicóptero perto do Hotel Glória; “a princesinha-do-mar” tinha inúmeras casas de muro baixo, bons de sentar para turmas do bairro de papo sem fim. Chocalhando sua matraca, o vendedor ambulante, que viu minha mãe menina, dava um toque colonial ao bairro, trazendo doce-de-leite e cocada ,- “quem diria!” Pão, leite e revistas eram vendidas na porta e o garrafeiro de sempre, além de comprar vasilhames, pagava alguns níqueis por pilhas de jornais velhos pesados criteriosamente.
Brincava-se na praça, em seus balanços concorridos e jogava-se pão para os girinos e guarus do lago. A rua servia para o queimado vespertino e a calçada bastava para a berlinda e o “pêra, uva – ou – maçã”, antes que o pai voltasse – de lotação – do trabalho.
Areia limpa, mar limpo, céu de anil, uns poucos engoliam água a mais colhidos pela arrebentação antes do banco de areia. Nos passeios noturnos à beira-mar, para fazer a digestão do jantar, passávamos por vizinhos, primos distantes, colegas de rua e de classe.
Gatunos roubavam calhas de cobre, samambaias de metro, roupas do varal ou algo de mais valor. Os mais violentos eram fortemente vilipendiados pelos jornais (O Globo, JB e Correio da Manhã), de público cativo, em eterna disputa por fatias indecisas de mercado.
Torcia-se pela Emilinha, pelo Jânio de vassoura em punho, pelo Botafogo insuperável (de Didi, Nilton Santos, Amarildo, Manga e Zagalo ) ou pela Mangueira com o mesmo ardor. Ninguém esquece que o Rio chorou em peso com as pedradas que os chilenos jogaram no Garrincha, o maior dos alvinegros na Copa de 62. Marchinhas de carnaval eram obrigatoriamente decoradas e aclamadas com paixão como vencedoras.
Gatos e cachorros – vira-latas no geral, canários e papagaios disputavam a preferência doméstica com empate estatístico. Na lagoa Rodrigo de Freitas, tainhas e robalos nadavam em paz; um único ataque fatal de tubarão turvou a orla de Copacabana.
Palhaços de cara pintada anunciavam, com buzinas estridentes, mais um circo mambembe em terreno baldio da Ataulfo de Paiva. Comendo pipoca, a molecada delirava com os saltos mortais que astros selvagens executavam no picadeiro, longe de imaginar os maus–tratos às feras adestradas e a vida difícil por trás das máscaras risonhas.
Muito procurados nos fins-de-semana, o Corcovado, o Pão-de-açúcar, o Parque da cidade, o Jardim Botânico e o Zoológico sequer ficavam lotados com um povo que crescia 3% ao ano. Manchas de mata Atlântica permaneciam encravadas nos bairros mais urbanizados da cidade. Praias desertas se sucediam a partir de Recreio dos Bandeirantes, com restingas intocadas.
Toda essa vibração tinha no rádio seu difusor inconteste. Na sala, no quarto, no banheiro, no ônibus, no escritório, alguém ouvia o que era digno de nota. Altos índices de audiência esquentavam a programação das emissoras entre os blocos de ouvintes diferenciados. Programas de calouros, futebol com seus locutores que marcaram época, noticiários de opinião, música popular brasileira, novelas da rádio Nacional… Auditórios se mantinham repletos, anos a fio, com os mesmos animadores de fantástica popularidade. Eram esses tempos de grande participação popular, em que a cidadania se exercia em todos os níveis do cotidiano, quando tudo levava a crer que o Brasil era nosso e que o voto contava para isso, mesmo se sabendo (hoje) que as coisas não se passavam bem assim no Distrito Federal de então.
No escritório do meu avô, na Otaviano Hudson, discutíamos, madrugada adentro, tanto o fim dos dinossauros e do adorável dodô, quanto o futuro da Maria Eduarda e a traição de Capitu e nunca estávamos no mesmo time. Nesses pequenos passeios bucólicos, que todos faziam, em plena cidade surpreendíamos pássaros mais raros e desconfiávamos de outras pequenas presenças. Gambás e corujas conviviam com os mais boêmios. Criava pintos comprados na feira do bairro, que três vezes apenas vingaram.Cismava de levá-los para as férias de Teresópolis ou Friburgo, em caixas de papelão, o que, segundo a medicina do avô, expunha-os a flexões sem conta e fatais causadas pela buraqueira da estrada. Nair Rodrigo e Afonso tiveram vida adulta breve. Segundo me haviam dito, quando sumiram do quintal, havia sido obra de gente da praia do Pinto, favela perto do Leblon, onde passamos a morar.
Até onde posso recuar, minha lembrança mais longínqua de paixão pelos bichos foi a descoberta dos cavalos. Aos quatro anos passei as férias encerrada na cocheira do Tomy e do Yaloo. Nem eram meus, mas os contemplava embevecida – e para pasmo da família – sofri forte desilusão por não ter nascido cavalo. De novo no capítulo dos eqüídeos, anos mais tarde, reconheci a expressão de Nossa Senhora num burrinho de carroça, fato que provocou um – “Oh, senhores!” indignado em minha avó, católica fervorosa, a quem me apressara a contar a novidade em primeira mão.
Meu avô sertanejo, tradutor fluente de minhas primeiras linhas, já providenciara um potrinho para me agradar em sua primeira visita à capital federal. A inocência me traiu: meu pai vetou a tempo seu embarque no navio. Na visita seguinte, ganhamos um esdrúxulo casal, típico da caatinga e da gaiola, currupião e graúna, esta tiranizada pelo cônjuge. Em Patos, como no resto do Brasil, era lícito confundir bicho silvestre, com bicho doméstico.
Aos seis anos – finalmente!- um cachorro é adotado pela família. Revezando-se nos retratos, o trio de irmãos registra a nova hierarquia de valores: o sorriso migra para quem aconchega o pequeno Vick e os maus bofes acompanham quem segura o bebê da Estrela ou senta-se no Jeep de pedal.
Para comemorar os 15 anos – tão festejados na época, escolhi o Juvenal, papagaio-verdadeiro, em depósito mal disfarçado, abarrotado de jovens psitacídeos, em pleno mercado Municipal de São Paulo. Cadeia chocante e inédita para mim, um louro no poleiro exigia, inevitavelmente, a prévia descida àquele inferno.
Éramos ainda 50.000.000 de brasileiros na década de 50, 1/3 da soma atual com uma população rural que proporcionalmente era mais significativa que a registrada nos censos seguintes.O comércio de animais nativos se fazia livremente, com a remessa de milhares deles para dentro e fora do país, atendendo a colecionadores, zoológicos e crianças bem intencionadas. Os mesmos milhares baleias eram abatidas mares afora, num simples rateio entre as nações que se capacitavam a capturá-las. Apenas a cinzenta da Califórnia e as francas, por reconhecido esgotamento, escapavam do butim comercial.
Não sei precisar o momento em que o véu que encobria a extinção dos dinossauros se estendeu, para mim, sobre a bicharada brasileira. Em São Paulo, desprotegida da sombra de centenários oitis, sapucaias, sombreios e fedegosos – para citar alguns marcantes no arboreto carioca – a natureza recuava diante das construções, com um claro declínio dos moradores verdes e alados frente à ascensão da supercap.
Impregnada de ideais libertários, aboli a última gaiola, soltando um canário belga, feliz em seu cativeiro e despreparado para a alforria. Foi um marco simbólico, no verdor dos 15 anos, que militarizou a cândida devoção ao reino animal, levando-me a uma atuação combativa, que encontrou na arte sua expressão mais duradoura.
Uma geração de angelas caninas e felinas, perdida na rua, foi acolhida no orfanato que minha madrinha lutava por manter lá pelas bandas do ABC. Numa ocasião, paralisei as aulas na classe do colégio de freiras, onde estudava, mobilizando um batalhão de garotas de saia pregueada para salvar um pobre gato que tinha e cabeça enfiada numa lata, por perversidade de outra milícia.
Aos poucos fui distinguindo alhos de bugalhos até que em 1968, com leituras acumuladas, dirigi meu alvo para os nativos ameaçados, dando início à série de xilogravuras que continuo executando. Em 73 foi oficializada a primeira seleção dos animais que corriam maiores riscos, segundo o parecer de cientistas qualificados. Recorrendo a especialistas e à literatura pertinente ao tema, com raras viagens, além daquelas ao jardim zoológico, fui concluindo imagens destas criaturas, muitas exclusivas de nosso território. A carreira evoluiu com participações em salões e exposições, dos municipais aos internacionais, coletivas, voltadas muitas vezes para o meio ambiente e individuais de tema único. O titulo destas últimas ilustra o roteiro do meu estado de espírito: “Brasileiros ameaçados”, “Ilustres Bichos”, “Impressões silvestres”, “Natureza viva”, “Bichos refeitos”, “Reino desprotegido”, “Seleção Natural” e ainda “Rastros” e outros tantos num desfile incansável de uma nota só.
Ao lado disso, me apaixonei perdidamente pelas baleias e tive o ensejo de juntar diferentes atuações na campanha que se prolongou, por 10 anos, com artigos, entrevistas, mostras coletivas de arte, passeatas e um debate no Senado Federal entre ecologistas e a subsidiária da Reizo KK de Tóquio, iniciativa que precedeu a proibição definitiva da caça em águas brasileiras (1989).
Conciliando a estratégia com os cuidados da prole, aprofundei a pesquisa na fauna e aperfeiçoei a habilitação com goivas, penas e pincéis. Da comoção das campanhas brotou um sereno apelo à compaixão, elaborado no silêncio do atelier. Onças, tamanduás e baleias se sucederam nas obras, agora acompanhados de suas crias. Concluí que o coração tem razões avessas a outra ordem de razões. E que nem sempre é nela que se acha o solvente ideal para indiferença. Procurei dar prioridade ao papel que cada espécie singular desempenha, insistindo em que uma mensagem exclusiva se calaria com sua eliminação.
Na margem oposta, dei destaque ao que cada homem traz em si, entranhado, do modo de ser de cada bicho, tentando assim atrair a simpatia pela via de identificação. Sonhei fazer das imagens palco para diálogos insuspeitados entre vidas separadas por engano, e lamentava o desperdício com buscas extraterrestres, quando estamos mal sintonizados com os seres que nos acompanham nesta nau. É militância da fase madura em que um depósito de reflexões barra a passagem de gestos sem documentação.
Em 1989, na relação do Ibama, o número dos animais ameaçados subiu de 86 para 207 e, daquela data para cá, o número foi acrescido de outros 13. Aguarda-se ainda, no começo deste século, nova avaliação que, fatalmente, resultará num balanço negativo para os bichos, depois do crescimento demográfico e do avanço estúpido (e não seletivo) da fronteira agrícola, registrados neste período. A listagem seria justa se contemplasse a totalidade de nossa fauna, classificada por graus crescentes de ameaça.
Quanto mais circunscrito o raio da investigação, mais simples o procedimento e mais seguro o resultado. Municípios deveriam receber estímulos para encabeçar a pesquisa. Listagens regionais, que vêm sendo elaboradas tornam as avaliações mais precisas: SP, RJ, MG e PR se ocuparam dos riscos corridos pelos animais dentro do âmbito estadual, submetendo-os à escala dos que não precisam de maiores atenções até aos que deixaram de existir (o tatu-canastra, a maracanã-nobre e mais 15 outros estão extintos em SP).
Embora modesta, a seleção do Ibama deve ser prestigiada pelo esforço embutido em seu preparo e a proteção que assegura às espécies destacadas, indicando maiores cautelas quanto às áreas onde elas ocorrem. Se o exemplo destes estados for seguido pelos demais, teremos um retrato mais confiável das condições de sobrevivência que desejamos. Enquanto perseguimos esta meta longínqua, pelo pouco que conhecemos da nossa natureza (que ainda nos brinda com a identificação de novas espécies nos dias atuais, inclusive de primatas, ordem privilegiada pelos zoólogos), vamos nos convencendo da complexidade dos múltiplos biomas, onde o decréscimo de um compromete a sobrevivência de outros componentes.
Gastei meio século de trajetória concebendo apenas 160 animais. Em 1968, este projeto era exeqüível, na proporção de 18 anos para 86 espécies. Ou esta lista começa a encolher ou minha missão ficará por terminar. Confiante, carrego a bandeira do “preservar para conhecer”. O inverso já não satisfaz, depois que baixas sucessivas aconteceram, antes que pudéssemos estudá-las (a exemplo da ararinha spixii e da glaucus) ou que delas sequer suspeitássemos (na derrubada de hectares de mata virgem).
Profissionais displicentes, mas atuantes até em veículos de circulação nacional, parecem desconhecer a imensa pressão vinda de grupos poderosos que traduzem a natureza por cifrões. Desde a conferência de Estocolmo em 1972, onde as nações decretaram que a Terra estava adoecida por problemas ambientais, e consciência ecológica se tornou imperativa. Mesmo depois da Eco 92, sediada no Rio, ainda surpreendemos na grande imprensa títulos sensacionais como “Está sobrando baleia”, referente ao primeiro cruzeiro de recenseamento feito ao longo de nossa costa. Tal inconseqüência é de total agrado dos que, no comitê da CIB, reivindicam abates que lhes forneçam petiscos, batons e fixadores de perfume, cujos substitutos sintéticos se encontram há décadas no mercado. Com um intervalo de três anos, flagramos na mesma revista a mesma manchete: “Está sobrando onça no Pantanal”, que minimiza a caça ilegal que campeia nesta Reserva da Biosfera, além de sugerir o exemplo da vizinha Argentina, onde exóticos turistas pagam 2000 dólares pelo prazer de exterminá-las. Falta brio a quem divulga desinformações que não levam em conta o acelerado desmatamento, que expulsa os predadores de seu nicho original, condenando-os a atacar presas domésticas.
O mesmo se poderia dizer quanto aos alardeados ataques de tubarões em águas rasas em busca de alimentos que a sobre-pesca tornou escasso, ou o tratamento dado por alguns jornalistas ao famoso golfinho Tião, o fliper de Caraguatatuba, que acabou por matar um banhista, após sofrer terríveis agressões, cujo relato prefiro omitir. Ao invés de investigar os casos freqüentes em que cetáceos da mesma espécie se tornaram célebres por beneficiar crianças especiais, resgatar náufragos, acompanhar navios até o porto ou mesmo por tanger tainhas para as redes de pescadores, Tião foi alinhado aos seláquios (que aterrorizam os surfistas), vítimas, por sua vez, da leviandade que liquidou tantos lobos tachados de maus.
O bicho-papão migrou por hora para o reino animal: documentários sanguinolentos difundem repetidas vezes encarnações convincentes. “A Cruzada contra o Mal”, presidida por Bush, pretende transferi-lo para outro continente.
Poderia ainda citar o tom comedido face ao crime que representou a reabertura da Estrada do Colono no Parque Nacional do Iguaçu, tombado pela Unesco como “patrimônio da humanidade”. A justa indignação também não se manifestou diante da predatória reforma do Código Florestal, relatada pelo deputado Micheletto e aprovada pela Comissão da Câmara Federal (de tendencioso cunho ruralista). Ou a condenável divulgação dos valores alcançados pelos animais raros no tráfico ilegal, que fortalece a ganância dos captores ou a absurda teia do projeto “Avança Brasil” (sic) proposto por arrogantes autoridades em exercício, que deveria nos privar da metade da selva amazônica em futuro breve. (É fato notório o desmatamento que penetra 25 Km nas faixas laterais das estradas concluídas).
Se o rádio já pôde um dia refletir reverberar a participação vibrante dos ouvintes nos temas de interesse geral, apreendidos como pessoais, por que não resgatá-lo para remover essa crosta de apatia, endurecida sobre a baixa-estima que atacou os brasileiros? Dos tempos áureos da Rádio Nacional, queremos a sintonia coletiva e a cidadania atuante. Dos últimos 50 anos, da televisão e da informática, o acúmulo de informações, a consciência do mundo natural como um bem comum a todos os viventes e a fabulosa rede de comunicação que cruza o espaço em que vivemos.
Armas, drogas e comércio de animais silvestres disputam a primazia no “ranking” das maiores transações internacionais. Falamos de lucro. Apenas o repúdio coletivo pode enfrentar esse exército formidável, ora clandestino, ora ostensivo. Especialistas e abnegados não mudam a marcha dos acontecimentos. Enquanto não se engajar em massa na defesa de seu próprio ambiente, a população vai permanecer espoliada, não só pela supressão das espécies contemporâneas, mas ainda com perda da qualidade de vida, que por direito deveria exigir.
Esse compromisso que começa na economia doméstica (com o uso moderado dos recursos naturais, a rejeição a produtos tóxicos, o combate ao desperdício, etc) e alcançando o bairro, a cidade, abrangerá toda a nação, até desembocar em fórum globalizado, onde se discutam os críticos problemas planetários que, em contrapartida, prejudicam o nosso singelo e precioso trajeto.
E se, nos companheiros de geração, identifico grave perda de fôlego, é o inverso que sinto nas camadas mais jovens, felizmente mais numerosas. Um novo esquadrão parece de prontidão para apossar-se do que é seu, enterrando de vez a fase funesta do “brasil-ao-deus–dará”.
Pequenas luzes apontam para esta direção, quando sabemos, em exemplos recentes, que o faraônico projeto de transposição de águas para o São Francisco será substituído pela recuperação das matas ciliares do Velho Chico e de outros rios da região. Desde o ciclo canavieiro do século XVI, que trouxe miséria e seca mais drástica para o sertão, a reposição destas margens sempre foi a providência primordial, adiada seca a seca, até o momento atual.
Nordestinos carentes do mínimo serão convocados para restaurar o ambiente do semi-árido, que bem conhecem, devastado por portugueses, holandeses e coronéis com a mesma garra. Abandonados a uma vida severina, homens e bichos da caatinga disputam a água gota a gota, perdendo-a para os mais abastados que se assenhoram do lençol aqüífero. Como último recurso, calangos e preás acabam na panela cozidos sobre a lenha dos últimos sabiás. Cabras macérrimas arrancam do solo gretado qualquer projeto de verde que garantiria o parco recurso para a sobrevivência animal até à distante estação chuvosa. Broto ainda, o licuri é desenraizado por este rebanho faminto, ameaçando a raríssima arara-de-lear, endêmica nesta área castigada, que baseia neste coco a sua dieta.
Vale lembrar que se, em relação à extinção maciça dos dinossauros, datada do final do mesozóico, os cientistas divergem ou convergem quanto à origem – cósmica ou terrena – de drástica alteração ambiental, há unanimidade em culpar o agente humano por desastre equivalente, testemunhado ao vivo por todos nós. Cerca de 17500 espécies vêm sendo varridas da Terra, anualmente, em 50 espantosos extermínios diários, pelos cálculos mais lúgubres.
As áreas naturais mais ricas do planeta estão em sua área humana mais pobre.
O “progresso” perseguido pelas nações bem sucedidas do hemisfério setentrional trouxe um ônus para a vida selvagem, aliás bem menos diversa do que a existente ao redor do Equador onde, em 2% das terras globais cobertas por selvas tropicais se concentram 50% dos seres vivos. Se, nas matas temperadas, a menor variedade de espécies facilita sua regeneração, a heterogeneidade biológica envolve um complexo desafio.
A ganância dos invasores do norte, destratando a riqueza das colônias como mero armazém de matérias primas, consumiu metade de suas áreas florestadas. Expondo solos superficiais à forte insolação, criou áreas degradadas, impróprias para qualquer cultivo.
Na contramão do dito progresso, a baleia-franca-do-sul teve mais sorte que sua congênere do Atlântico e do Pacífico–Norte. Livre das colisões com um congestionado tráfico mercante e da mais acentuada poluição industrial, vem se recuperando a olhos vistos de moradores, estudiosos e turistas daqui e de lá.
A proposta, liderada pelo Brasil, de consagrar como santuário da vida marinha as águas do Atlântico-Sul, vem sendo vencida pelo voto de países minúsculos, signatários da Comissão Internacional das Baleias (6 deles caribenhos e as Ilhas Salomão) e por filiados recentes (Panamá e Guiné), persuadidos por verbas do Japão. Só neste circuito, 42 cetáceos (9 deles ameaçados), 37 dos quais percorrem nossas águas jurisdicionais, estariam a salvo da escalada de abates, movida por membros tradicionais, favoráveis à caça (Japão e Noruega). Além das minkes, permitidas, os japoneses voltaram a arpoar baleias – de bryde e cachalotes (cujos estoques apresentam distúrbios sociais), rompendo o cessar-fogo garantido pela moratória de 1986.
Na virada do milênio, títulos contraditórios destacam o país no planeta: somos campeões da biodiversidade e da desigualdade social; impossível mantê-los lado a lado por muito tempo.
É mais seguro concluir que a miséria humana empobrece o meio-ambiente e vice e versa. O sucesso do projeto Tamar se deve ao emprego dos pescadores que viviam da coleta de ovos e da carne de tartarugas marinhas. Profundos conhecedores dos quelônios, tiveram a chance de mudar de lado e viver de sua preservação, obtendo vantagens diversas.
A mesma postura vem sendo adotada com os ribeirinhos da Amazônia em relação à nossa maior tartaruga fluvial. O extrativismo e a cultura de frutos locais podem juntos comungar do mesmo acordo, para lembrar alguns dos muitos êxitos que a nova mentalidade vem conseguindo.
A reviravolta que se espera dos jovens, que em breve devem ocupar cargos de decisão, é apostar na natureza para reconstruir o país. Admiradores da bela fartura tropical têm seus olhos voltados para o Brasil. Descaso à parte, passado à parte, ainda temos muito a preservar. E se fizermos valer as leis que um congresso – como o nosso – a custo aprovou, nossos vizinhos, ditos selvagens, vão sobreviver. Mais justiça, mais igualdade, mais cidadãos. Um contingente maior de patrícios esperançosos, para zelar por um patrimônio incalculável que alguém nos confiou.
Angela Leite – 2000
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.