“Que Deus abençoe esta bagunça!”. Essa é a frase que está escrita num quadro de madeira da grande casa. Um sobrado de esquina, que chama a atenção de quem passa, ou mesmo amedronta, pela quantidade de altas árvores e de grandes cachorros. Na realidade, a residência, que fica na zona sul de São Paulo, no bairro Super Quadra Morumbi, ao ser reformada com materiais de demolição, foi projetada para ser duas. Uma passarela liga as residências e essa foi a solução que o casal Angela Leite e Aloysio Biondi, por ocasião de seu divórcio, encontraram para que nenhum dos dois tivesse que se sujeitar a ficar longe dos três filhos.
Em 2000, depois do falecimento do jornalista Aloysio Biondi, pai de Pedro, Antonio e Beatriz, a passarela passou a ligar o sobrado da família ao ateliê da artista plástica Angela Leite e ao acervo de Biondi. O espaço da artista naturalista fica no piso superior e é caracterizado por diversos livros espalhados, obras, prêmios, instrumentos de trabalho e mais mil anotações coladas por todos os cantos. Também integram essa bagunça Sereia, Luanda, Garoto e Catita, os quatro cachorros que não desacompanham a matriarca.
“Mãe, por que eu não nasci cavalo?”. Com apenas quatro anos, assim perguntou Angela, depois de passar a maior parte do tempo de suas férias em Teresópolis sentada em frente a uma cocheira.
Angela Maria de Oliveira Leite nasceu em 1950 no Rio de Janeiro e foi criada no quarteirão da praia no Leblon. “Era um outro Leblon”, recorda a artista. “Com horizontes lindos: era tudo Mata Atlântica e um mar sem fim”. Mudou-se com 12 anos para São Paulo, quando seu pai, o paraibano Manuel Leite, ascendeu de cargo dentro da agência de publicidade na qual trabalhava.
A infância decorada pelo meio ambiente, a inexplicável paixão por animais e o encontro com a artista plástica e tia Ely Bueno em São Paulo marcaram o começo da carreira de Angela. Aos 15 anos, fez aulas de xilogravura com a austríaca Anna Schultz. Um curso de desenho livre, na Faap, também veio a contribuir para sua formação artística.
Em 1968, Angela passou a cursar Filosofia na USP, na mesma época em que conheceu Aloysio Biondi. Aos 19 anos, [por convite da jornalista Judith Patarra], foi trabalhar como aprendiz na revista Veja, no setor de diagramação. “Ratatatá, ratatatá, ratatatá. Foi assim que me apaixonei por Aloysio”, emociona-se Angela ao lembrar do som da máquina de escrever do editor de economia de Veja. O casamento ocorreu no final de 1973, e se manteve até 1989. Os três filhos nasceram num curto período de quatro anos. O mais velho, Pedro (31), e o do meio, Antonio (30), tornaram-se jornalistas assim como o pai, sendo que ambos têm grande interesse em discussões sobre o meio ambiente, como a mãe. “Sempre teve um diálogo muito forte entre jornalismo e questões ambientais em casa”, diz Antonio. “O Brasil e sua natureza eram os convidados de honra de nossos jantares”, completa a mãe.
Apesar da Filosofia e do trabalho de diagramação, Angela sempre soube que seu perfil era mesmo artístico. Aos 18 anos, a artista plástica começou a fazer sua vasta série de bichos brasileiros ameaçados. Sua primeira xilogravura foi o tatuetê. A técnica consiste em desenhar com pequenas facas num quadro de madeira e, com tinta de impressão, carimbar essa matriz num papel de arroz. Além da xilogravura, a artista faz trabalhos com bico de pena, conhecido também por nanquim, e com lápis de cor.
Das cerca de 250 exposições de que participou, ela considera como a mais importante uma que foi realizada em 1997 na Alemanha, no Museu da Coleção Zoológica de Munique. Era a única brasileira, entre seis artistas naturalistas. Além de ganhar o prêmio de cinco mil marcos, recebeu de presente livros sobre Von Martius e Spix, dois naturalistas alemães que estiveram no Brasil coletando espécimes, entre 1817 e 1820. O interesse por eles começou quando a artista plástica teve seu primeiro contato com um desenho feito por Von Martius chamado “Lagoa das aves do São Francisco”.
Apaixonadamente contra a transposição do principal rio nordestino, Angela Leite pretende ir ao encontro da lagoa e fazer um desenho da mesma paisagem, dando, porém, a sua interpretação. Depois, ela deseja copiá-lo num pedaço de imbuia utilizando a técnica da xilogravura. Para tanto, ela vem se encontrando com especialistas, que a orientam sobre as especificidades ambientais da região. Recentemente, ela teve um encontro com Miguel Trefaut, diretor do Departamento de Zoologia [do Instituto de Biociências] da USP: “Parece que o caminho para o meu protesto, está luminoso. Impossível fugir de um compromisso desse. Vou procurar destacar justamente a beleza das vidas, convencendo as pessoas de que é pelo vigor e pela harmonia da natureza que ela merece ser preservada”, empolga-se Angela.
Além desse projeto, ela já esteve envolvida com a proteção das baleias brasileiras. Há 15 anos, a artista foi presidente da União em Defesa da Baleias. Atualmente, ela é integrante de uma ong de conservação ambiental, a Rede Pró-UC. Não por acaso, seu animal preferido, mais estudado e desenhado são as baleias.
A realização profissional da artista está “no olhar das crianças carentes”, com as quais realiza um trabalho de educação ambiental por meio de suas obras de arte. “Sou péssima para comercializar minhas gravuras, mas o encanto que tenho ao ver as crianças de poucos recursos devorando o que eu levo a elas me estimula a melhorar cada vez mais o que eu faço”, conta a naturalista.
Angela tem um olhar meigo e uma voz doce contornada por um sotaque carioca. Por ser alta, magérrima, de cabelos curtos, negros e ralos e por ter uma pele branca, parece uma típica européia. Tem um estilo clássico, que encantou há dez anos Miguel Flusser, seu atual namorado. Ao lado dele, a artista acabou de realizar mais um de seus projetos: plantaram quatro mil árvores recompondo a floresta que um dia existiu em Itatiba, interior de São Paulo, local onde Miguel possui uma chácara.“Pegar o carro com meus três filhos e sair viajando por este país lindo que é o Brasil”. Esse é um dos grandes prazeres de Angela Leite, que com seu trabalho e estilo de vida se mostra uma brasileira apaixonada por assim ser.
Ana Cristina Kleindienst é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e de Direito da São Francisco-USP
Ana Cristina Kleindienst – 2007
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.