Reino Desprotegido
Enquanto Roraima ardia, sem as águas de costume, eu subia e descia as escadas do atelier para o jardim que sobrou depois que lá soltei as meninas labradoras.
Subia e descia, Luanda e Sereia atrás, procurando o fio da meada perdido no meio deste fogo que não cansava mais de queimar. Queimava meus buritis, angelins que só 5 homens abraçam, gigantes do tempo do Cabral.
Queimava a riqueza rasteira do cerrado e abafava com ela uma confiança trabalhada por 30 anos. Longos anos de fidelidade ao bem dos bichos. Como se um rabo feito com esmero levasse um mutuário de sua espécie a abaná-lo com mais vigor.
E uma só labareda varre do mapa um pelotão da mesma espécie desenhada. Gerações e gerações de seres vitoriosos são transferidas para “o que passou”. Por que não queimaram antes o bicho que ficou no papel?
De hora em hora o fogo ilumina um pouco mais as trevas de que foi feito: descaso, desprezo, desmando. Não há verba para bicho no tempo de eleição. Mesmo que uma floresta salva roube apenas um apartamento luxuoso da barganha (5 milhões de reais é só o que se pede do BIRD).
Frente ao gigante, pela própria natureza, por que sofrer se a majestosa onça perdeu de vez o rastro do parceiro que a escolhera? Que auxílio lhe presto se lhe abaixo o rabo no desenho denunciando sua tristeza recente ?
Se as florestas são móveis exigindo sucessão das árvores pelo regime de sombra e luz, quantas estações irão consumir para refazer tantos ciclos avariados? Sabemos que um mar espoliado com sobrepesca, poluentes, redes abandonadas e trânsito intenso barra o percurso das baleias, que há milhares de anos refazem a mesma viagem. Cinqüenta anos foram precisos para que a baleia franca mostrasse sinais de recuperação no sul do Brasil.
Quantos reais e quantas cabeças custam a volta de um menino perdido para casa? É conta que alguém da platéia pode calcular para nós. Com 104 famílias refeitas e bem sucedidas basta repetir a operação e festejar o resultado.
Atacado em seu leito, suas margens e sua fonte, sujeito a lixo, esgoto e venenos diversos, quantas campanhas dispensará o Paraíba do Sul para nos devolver suas piabanhas e pirapitingas?
Há muito sentimento nesta sala… Por isso enxergo entre vocês uma brigada que apaga fácil o fogo na mata dispensando o “Diário Oficial”. Acho que esse rio colossal que corta a cidade é tarefa própria para tanta disposição.
E pelo mesmo motivo pude chegar tão chamuscada e vou sair tão confiante de Jacareí.
Angela Leite – 1998
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.