Sertanejando
Todos os verões, regularmente, cumpro uma rota migratória percorrendo trilhas abertas por Guimarães Rosa e Machado de Assis. Carioca e bichófila, foi a fórmula que encontrei de revisitar minha infância e tomar o mundo mais viajável. No Rio antigo recupero o novelo da minha avó, que desfiava romances repletos de bilhetes cheirosos, arrufos, valsas e polcas numa corte em que o namoro era permitido e tinha lugar e havia tempo. No Guimarães ouço respeitosa os silêncios trocados pelos mateiros, pitando em volta do fogo, dando nome a todas as vozes denunciadas quando o sol se põe. Aprendo que o “sertão é de noite” que a “coisa”, a”morma” vem, “evem” e sinto o calafrio das madrugadas na boca do mato.
Há muitas estações embalo o desejo de visitar os Gerais. Soletrando ao vivo a paisagem povoada pelos bichos, farejando as pistas deixadas pelo seu encantador, pois “só na foz dos rios é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes”.
Enveredo mais uma vez pelas águas do Urucuia. “Cumulo-me”. . . vinte anos depois que João ficou encantado. Que trato dão hoje ao seu velho amigo Chico?
Visto a fantasia de seguir meu mestre entre as fileiras de buritis, de ouvir o pior do socó à beira do brejo, descobrir buraco de tatu e garça vestida de noiva. Vou assistir revoada de maitacas, choco de urubu, concerto de pererecas e a passarada entretida com sua corte. Vou ter medo de boissununga, do manhoso tio iauaretê, das correições de saúvas devorando o que Ihes corta a passagem.
Penso num inventário da bicharada do cerrado, solta num mapa circunscrito. A salvo da extinção, aos cuidados do menino de Cordisburgo – o “burgo do coração”. Encarando cada espécie como uma aula de sobrevivência. Como uma vida bem sucedida, representada por cada indivíduo que se mantém livre, perigo a perigo, com a alternância das emboscadas que o dia e a noite lhe preparam. Pode-se lamentar com medida e matança de um casal de tamanduás, aconchegados confortavelmente sob sua espessa cauda, quando outros deles se enrodilham, para dormir, a poucas léguas da cena.
Passo o cetro para Guimarães. É ele quem vai decidir o flagrante do bicho que vou desenhar. Reservo para mim a escolha dos pincéis, das penas, dos lápis de cor e das goivas e buris.
Angela Leite – 1987
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.