Pindorama, Terra dos Papagaios
Uma breve biografia*
A exemplo das caravanas que vinculavam o Ocidente conhecido aos mistérios do Oriente, acabei concluindo – depois de várias jornadas – que a militância em favor da natureza desses brasis pode se deslocar com vantagem das ruas para o atelier.
Perseguindo a identidade de cada bicho, senti mais incisiva a mensagem, por peculiar e solitária que ela exige ser. É no palco que se abre entre dois sujeitos, que o papel – representado por cada modo de ser – se explicita mais profundamente. Enquanto se evidencia aquilo que o qualifica como vivente único e se expressar de modo singular, reconhecemos o acréscimo de mais uma riqueza para o planeta.
Despertar em cada um o muito ou pouco que ele possui daquela espécie, desenterrar nos confins esquecidos aquele jeito ruidoso de ser comunitário como o são ariranhas e papagaios à sua moda; a sólida comunicação corporal exercida entre as baleias de pele tão sensível; os complexos ritos de sedução perpetrados por seres emplumados e multicoloridos… este é o sonho que cada gravura e desenho carrega desde a sua concepção.
Não me cabe julgar se logrei mais êxito, na cruzada de sempre, trocando o discurso pela imagem na carga dos meus camelos. Algo me diz que um diálogo pode ser mais eficaz que a comunicação com platéia anônima. Frente à criatura específica que procuro exibir diante de cada um, em particular, um quê de muito pessoal ameaça brotar.
Se o brilho de um olhar selvagem permanece vibrante depois que as luzes se apagam, a rota se cumpriu. Não será esquecido, e será protegido por quem o vislumbrou.
Avaliar o processo pelo qual venho peregrinando de bicho a bicho; pesar a eficiência da comunicação almejada; aprofundar a possibilidade de transmiti-la a pessoas interessadas em incorporá-las ou compreendê-las; refletir sobre a arte como atividade de preservação e veículo de campanha…
São estas questões encantadoras, fascinantes, que podem manter a chama de muitas harmonias, tão oportunas face ao horizonte belicoso com o qual nos defrontamos a cada manhã.
Manejando, há três décadas, este desafio – com goivas, lápis-de-cor e bico de pena – procuro agora, no domínio da aquarela, nova técnica de expressão do mesmo tema. Adotando os instrumentos dos artistas viajantes, que se maravilharam com nossos trópicos, passo a cismar com imagens mais convincentes, que facilitem alguma forma de resgate.
A trilha é boa, a mestra Iole é esplêndida e a técnica alcançou grande êxito no trato do mundo natural. Cabe a mim conquistar competência para tornar o sonho viável e visível.
Pindorama, Terra dos Papagaios
Sou Angela Leite. Não dispenso apresentação. Moro e trabalho no mesmo endereço com três filhos e quatro cachorros, numa divisão equânime, de dois representantes por sexo para cada espécie (para quem não entendeu, tenho uma única filha). Venho de velhas famílias brasileiras, estritamente brasileiras, que se fixaram no país há gerações sem conta, no Rio e na Paraíba. Gravo e desenho bichos nativos desde 1968 e me aventuro por nossa flora de 1995 para cá, recorrendo a especialistas e à literatura pertinente para execução de meus projetos. Sou bacharel em Filosofia pela USP, tendo concluído mais quatro anos de Língua e Literatura Grega na mesma faculdade. Como ouvinte, acompanhei o curso de pós-graduação ministrado por Francis Dov Por, na universidade citada.
Participei de 60 coletivas oficiais (estaduais, nacionais e internacionais); 30 coletivas em galerias e ateliers; dez mostras em defesa do meio ambiente, onde se destaca a campanha em favor das baleias, na qual, como uma das diretoras da UDB (União em Defesa das Baleias), promovi debates, conferências, entrevistas e artigos na imprensa; realizei 18 individuais, uma delas na ECO 92, e quatro fora do Brasil, acompanhadas muitas vezes por palestras sobre as agressões à nossa natureza. Recebi nove premiações no circuito nacional e o Hiltelmann Kunstprises de 1997 no Museu da Coleção Zoológica de Munique. Um dos meus maiores constrangimentos foi descer a Rampa do Planalto com o Collor, por honra das baleias.
Recentemente, fui aconselhada a incluir o Aloysio Biondi, falecido no ano passado, no meu currículo, com o qual convivi mais de 27 anos, 15 dos quais em comunhão de tudo. Deveria também incluir um grupo sólido de amigos que me presta todo tipo de assessoria. Meu epitáfio, sem dúvida, será referente a isso. Minha amiga Lia de Almeida Prado, uma sábia da Grécia na atualidade, fez várias correções no meu texto, até os minutos finais de minha vinda para cá.
Que faz diante de uma platéia de doutores uma figura reprovada em Lógica, que se perde em tabuada da quarta parcela em diante e se embaraça nas próprias teias ao falar em público?
Como na música de Paulinho da Viola, reconheci que numa terra de doutores outros fazeres não tem valor. Um bom doutor deve dobrar vários Cabos da Tormenta para transmitir suas reflexões. Em breve recomeço minha trilha acadêmica. Certa de que a nossa segunda miséria está na Educação, vou me empenhar numa formação regular, alinhando-me aos que já optaram por esse bom combate.
Sou louca pelo Brasil. O sangue nativo não dá conta disso. Paixão, já disseram, não se explica. Também já sugeriram que é no regional que facilmente descobrimos o universal. No meu caso, a paixão é útil, no momento grave de baixa auto-estima no país.
Carioca, criada no ambiente deslumbrante de minha cidade natal, cresci convencida de que este país tropical, abençoado por não sei quantos deuses, é bonito por natureza.
Nada mais brasileiro que um cenário litorâneo, em pleno verão, sob a sombra dos coqueirais; os as veredas delicadas de buritis no panorama dourados dos cerrado; butiás aglomerados que dão um toque tropical às paisagens mais frias do país; florestas luxuriantes onde convivem inumeráveis e variadas palmeiras.
Disputamos com a Colômbia a primazia na diversidade de espécies de palmeiras. Mas suponho que levantamentos em curso nos parques nacionais menos pesquisados decidam a pendenga. Grandes extensões fronteiriças, tombadas na Amazônia, mal começam a ser desbravadas pela Ciência (novas espécies de primatas, por exemplo, nos surpreendem numa cadência semestral). Ostentamos uma coleção de 221 espécies.
Os tupis costumavam referir-se ao nosso território como “Pindorama” – terra das palmeiras. Os navegadores que aqui chegaram chamaram-na de “terra dos papagaios”. Acabamos depois conhecidos como “terra do pau-brasil” e com isso quase acabaram com esta esplêndida criatura.
Ainda temos tempo de nos livrar da pecha de “país dos papagaios ameaçados”. Da soma de 72 espécies, sem rival no resto do Globo, poucas ordens são tão rondadas pelo risco de extinção (primatas e passeriformes são seus companheiros na negra relação). Eram 11 reconhecidas pelo Ibama oficialmente em 1973, 14 em 1989, acrescidas de três que constam de anexo para os “presumivelmente ameaçados” (por serem insuficientes os dados referentes a eles) e serão ainda mais numerosos na nova listagem em vias de ser publicada no ano corrente.
Pela arara-azul-pequena (Anodorhynaus glaucus), nada mais podemos fazer, pois o último exemplar conhecido morreu no Jardim d’Aclimatation em Paris por volta de 1910. A ararinha-azul (Cyanopsitta spixii) desceu mais um degrau neste século, pois o último indivíduo livre, amaziado com uma maracanã (Propyrhura maracana) num bando de sete delas em Curuçá, desapareceu de várias intervenções mal sucedidas.
É chocante para mim denunciar que o valor do tráfico de animais silvestres só é superado pelo de drogas. É um índice tão vergonhoso que deveria ser dito à boca-pequena, como uma maldição que devemos carregar, por toda a insanidade a que chamam progresso. Indiferentes à degradação ambiental, que afeta diretamente nossa saúde física e mental, no mundo inteiro, por falta de escrúpulo ou informação, pessoas – ditas normais – insistem em engaiolar os psitacídeos, justificando a saída clandestina do país de 500 animais de uma única espécie (Hyaeynthinus, citado por Sick) ou xanthops, segundo relato que eu mesma ouvi no mês passado.
Da Anodorhincus leari, nossa mais ameaçada atualmente, foram apreendidos dois exemplares em Londres há poucos meses. Dezenas de armadilhas foram flagradas, segundo delatou a ONG Renctas, no Raso da Catarina, seu único refúgio, nas vésperas do feriado da Páscoa de 2000, quando os guardas estariam dispensados.
No ranking da extinção, tudo se precipita: quanto mais raro um animal, mais alto o seu valor de mercado. Como impedir que a imprensa divulgue essas cotações? Como forçar o Estado, depauperado por políticas malogradas, a zelar por criaturas desprotegidas que, por lei, estão sob sua guarda?
As mesmas graças que encantaram os europeus que invadiram estas terras justificam a predileção pelos psitacídeos como bichos de estimação. Tido como os mais inteligentes da Classe (das Aves), alcançam o nível mais alto em cerebralização com um peso de 28,07 (índice intracerebral) medido na araraúna. E mais não vou acrescentar ao elogio dos amigos em questão por receio de despertar nos presentes irresistível compulsão de comprar um deles, compulsão da qual eu mesma precisei me livrar.
No grau de devastação que atingimos, as perdas individuais são relevantes. A perda da ninhada, da árvore que habitualmente abrigava o ninho, a interferência humana na estação reprodutiva, devem ser contabilizadas. A árvore derrubada para a captura dos ninhegos pode ser uma palmeira morta onde os ocos são mais comuns ou mais facilmente escapáveis. Pode ser uma fruteira visitada há tempos ou uma palmeira no auge de seu viço fornecendo sustento para as aves locais. Porque as palmeiras – eis a questão – são procuradas pelos psitacídeos por motivos variados: alimentação, descanso diurno, refúgio noturno e nidificação.
Alguns cocos atraem uma variedade de representantes da família, do diminuto tuim (Forpus) às maiores araras. Os mais populares são aqueles dos buritis (Mauritia flexuosa) presentes nos cerrados brasileiros, das juçaras florestais (Euterpe) do nosso famoso palmito, do jerivá (Syagrus romanzoj fiana), a palmeira de mais fácil cultivo no país.
Cocos mais duros como os da macaúba (Acrocomia aculeata), de vasta distribuição nacional, só podem ser abertos pelas aves maiores, que chegam a usar um pedaço de pau para quebrá-los (Hyacinthinus – Sick).
O carandá pantaneiro fornece cocos para Nandayus (príncipe-negro) e Myopsitta (caturrita). O coquinho do acuri (Attalea phalerata), da mesma região, é catado no chão pela arara-azul-grande.
O licuri é a base da alimentação da arara-azul-de-lear e mais verde e mole se presta à Aratinga acuticandata, de bico mais delicado.
O coqueiro da Bahia é procurado por Aratuega weddeli (periquito-de-cabeça-suja) e duas espécies de Brotogeris (periquito); a primeira come-lhe as flores e pica-lhes as folhas, numa brincadeira útil que lhe mata a sede e lhe fornece fibra (Yamashita).
Aratinga leucophthalmus, este periquitão-maracanã que pode ser visto na USP, aprovou os cocos desta palmeira exótica australiana (Archantophenix cunninghiana) plantada no campus. Periquitos-verdes (Brotogeris) fazem seus ninhos nelas, nas bainhas foliares junto aos troncos (USP – Elizabeth Höfling).
A palmeira predileta de Barbosa Rodrigues, Astrocaryum aculeatum (tucumã), tem seus cocos comidos por uma marianinha (Pèonites leucogaster) e pela tiriba-pérola (Pirrhura perlata lepida) – Yamashita.
A extinta glaucus contava com os frutos do Butya paraguayensis.
A canindé é a única das araras que faz ninho em palmeira. Yamashita surpreendeu-a no pachimbão (Iriartea deltoidea).
A maracanã-guaçu (Ara severa) come inajá (Attalea maripa)
Orthopsittace manibata (maracanã-de-cara-amarela) tem a tudo a ver com buriti: come, dorme e nidifica na planta viva ou morta.
A maracanã-nobre (Diopsittace nobilis), introduzida em São Paulo, faz o ninho no topo de palmeiras mortas.
Dentre os papagaios, Amazona vinacea, o peito-roxo, come flores e frutos da juçara e cocos da indaiá (aquela que lembra um espanador no litoral sul de São Paulo) e usa o jerivá morto para ninho. Ele e seu congênere Amazona rhodocorita (chauá) pegam frutos deste Syagrus (Miriam Martuescelli).
O papagaio verdadeiro (A. aestiva) come acuri e a parte amarela da macaúba, segundo Yamashita e o ochrocephala serve-se desta última e do tucumã (Astrocaryum aculeatissimum).
O sabiá-cica (Trichlaria malachitacea), que alguns devem conhecer pelo canto famoso, pode nidificar em palmeira e come frutos da juçara.
Poderia citar outros pares de palmeiras e psitacídeos. O resultado será uma exposição para a qual espero ter o prazer de convidá-los. Será também, possivelmente, o tema de minha pós-graduação em Artes. Esta nossa conversa é o começo oficial do meu compromisso.
Todo esse inventário se tornou possível, para uma investigadora de outras paragens, pela generosidade excepcional de estúdios que apostaram na minha obstinação, contrariando o desencorajamento de uns poucos que só concebiam o casamento de palmeiras com as araras.
À frente de todos eles, fico feliz de divulgar o conhecimento acumulado por um jovem mineiro cuja paciência parece não ter fim. Luís Silveira, que transita por estes dois mundos, defende em breve seu doutoramento na USP e já é o responsável pela seção de aves do Museu de Zoologia. Tratem de conhecê-lo.
E quanto a nós, exemplares desta controvertida espécie, primatas por ascendência, que vínculos tecemos com as palmeiras?
Passei por vexame recente, numa das raras vezes que compareci a um vernissage e falava entusiasmada das minhas novas paixões destes últimos dois anos. A roda era de colegas que há tempos não via. Um deles, mais provocativo, disparou à queima-roupa: “– E afinal, por que essa mania de palmeira?”. Fiquei rubra, perdi a verve e deixei o interlocutor espinhoso sem resposta satisfatória. Era óbvio, para mim, o aspecto fálico evocado por elas. Corri atrás de um amigo junguiano, no dia seguinte, para investigar minha impublicável suposta “fixação”. “– Puro engano”, disse-me ele, “palmeiras são um antigo símbolo materno”.
Provedoras generosas pontuavam as extenuantes travessias pelo deserto, abastecendo as caravanas com suas energéticas tâmaras que nos oásis vingavam. A palmeira de significado mais recuado para a humanidade é a Phoenix dactylifera. Ela conservou, em sua designação científica, os laços que evocam o Oriente. A antiga rota que ligava este ao Ocidente, através do norte da África e do Oriente Médio, é justamente seu ambiente original.
Phoenix em seu sentido primitivo é vermelho; também é púrpura, empregada pelos fenícios para tingir tecidos (retirada do molusco Murex brandaris) e, por extensão, acabou designando os próprios fenícios, por serem eles os pioneiros nesta valiosa tintura; além disso, a palmeira, cuja tâmara era comercializada por este povo, mereceu o mesmo vocábulo. Púrpura, fenícios e tamareira ficaram solidariamente comprometidos.
Ainda a ave fabulosa que renascia das cinzas, exibindo asas vermelhas, recebeu o nome de fênix.
Quanto ao nome da espécie, dactylifera, refere-se ao formato dos frutos que lembram dedos (dactylus, em grego). Sua importância é atestada por Heródoto, que ainda se refere ao vinho dela obtido; por Xenofonte, em diversas passagens; por Plínio, que nos conta que Herodes agradava César Augusto enviando-lhe tâmaras de seu pomar na Judéia. Na Grécia e na Itália ela era estéril, sendo usada como árvore ornamental.
Na tradição dos povos itálicos, prevaleceu o termo “palma”, primeiro referido à palma da mão para, em seguida, por metonímia, significar a mão inteira; daí se estendeu para a pata dos palmípedes; para o fruto da palmeira (tâmara), seu tronco ou folha lembrando a mão espalmada. Palmetas são elementos decorativos muito usados nas artes greco-romanas.
A palma era oferecida como símbolo da vitória; vários santos da Igreja Católica são representados empunhando palmas. O Domingo de Ramos é logo evocado quando pensamos neste significado: Jesus foi saudado com elas na chegada a Jerusalém.
Conto-lhes uma anedota verdadeira, vivida no tempo em que minhas duas labradoras eram novinhas e me receberam num fim de tarde de domingo trazendo à boca as folhas das infelizes palmeiras que eu pelejava criar no jardim. E eu, desolada, repetia: “– Mas não é possível! Até para os meus cachorros comemorar o Domingo de Ramos é irresistível!”.
Trópicos, vida boa, alegria, abundância, vivacidade são sentidos despertados pela Ordem Principes, com sua única família Palmae, e pela ordem Psitaciforme, com sua única família Psitacidae.
Plantem palmeiras, contribuindo para realçar a beleza do país e sua vocação florestal e turística. Estarão cuidando com isso também dos nossos papagaios, com todo o gosto de viver que eles podem nos transmitir.
Já estou fazendo a minha parte. Na chácara de meu amigo Miguel Flusser, em Itatiba, com apenas 6 mil m2, arrumei “colocação” para 300 mudas brasileiras (“colocação” é o termo empregado pelos cachorreiros da cidade para arrumar dono para os vira-latas abandonados). Miguel sempre me tranqüiliza: “– Calma, calma… Eu sei que para a Angela sempre está faltando palmeira!”.
São Paulo, 24/08/2001
* Texto-base de palestra realizada no Instituto Butantan, em São Paulo, como parte integrante de curso de extensão universitária
PS: Ao deixar o prédio do Instituto, por volta das 17h30, na companhia de alguns membros da platéia que me ajudavam a carregar diversas gravuras, fomos surpreendidos por um par de papagaios-verdadeiros que cruzaram nossa passagem e foram pousar num cacho carregado de coquinhos roxos da palmeira-de-leque-Livistona (gênero muito apreciado por antigos paisagistas, que não ocorre no Brasil).
Por mais apoteótico que tenha sido o “gran finale”, dou minha palavra de honra de que não os contratei para isso.
Angela Leite – 2001
A artista desenvolve atividades de sensibilização às questões da natureza com escolas e instituições. Participa de campanhas de entidades como a União em Defesa da Natureza e a Rede Pró-Unidades de Conservação e é membro-fundador da União em Defesa das Baleias. Ministra, também, cursos de xilogravura combinados ao conteúdo ambiental e de sustentabilidade.